quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Episódios curiosos (1)

Numa das operações realizadas no Lago Niassa, um grupo de assalto comandado pelo Oficial Imediato foi desembarcado em botes, a partir duma LFP, na noite de 17ABR1969, na zona de Chigoma. Já desembarcados, verificou-se logo a seguir que o local, uma pequena praia, não permitia a penetração para o interior. À esquerda, portanto a Norte, desaguava ali mesmo um pequeno rio; para o interior, a Leste, uma zona pantanosa que ía aumentando de profundidade à medida que se avançava, com a agravante de ali haver muitas formigas que se prendiam ao nosso corpo como se tivessem tenazes na cabeça, fixando-se por todo o corpo e inclusive em partes mais sensíveis; restava ainda do lado direito, a Sul, uma zona extremamente arborizada e de vegetação muito densa até ao chão que parecia intransponível. Depois de esgotadas as soluções que se vislumbravam e estando a noite bastante escura, decidiu-se pernoitar naquele local, o que contrariava as intenções tácticas, de penetrar no terreno o mais possível ainda de noite.

De madrugada, ainda antes dos primeiros alvores do dia 18, dia do 23º aniversário do Oficial Imediato, tentaram-se de novo as anteriores alternativas, que resultaram infrutíferas. Pareceu então ao Imediato, que mais jovem tinha sido razoável nadador, que ainda haveria a possibilidade de explorar a possibilidade de tentar atravessar o pequeno rio, a nado. Com uniforme e calçado, com o cinturão à cinta com 6 carregadores de G3 e um saco de plástico camuflado com o poncho no interior, para fazer o teste na opção mais difícil. Desconhecidas técnicas que há hoje de utilizar o uniforme como flutuador, a pequena travessia foi desgastante e não concluída, porque a acessibilidade ao outro lado estava tapada por imensa vegetação que nascia no rio, tipo canavial (que se dizia responsável pela propagação da bilharziose*). Aí pensou que conseguiria descansar um pouco, mas ao agarrar um braçado das canas elas vergavam com o peso e afundavam o nadador que com dificuldade se conseguia manter à tona de água. Foi então neste período de luta de sobrevivência, que estando o saco do poncho ligeiramente afastado do corpo e a flutuar, mereceu a atracção dum jovem crocodilo até aí não visto, de cerca de 2 metros, e que o tentou abocanhar. A preocupação e o cansaço eram tais que a presença deste anfíbio foi na altura muito desvalorizada, reveladora duma certa inconsciência. Ultrapassado este aspecto, maior peso assumiu a vontade de regresso à margem, em que o peso das cartucheiras municiadas e das botas molhadas, mesmo sendo as de lona, dificultava a natação. Assim, libertou-se a meio do rio do cinturão com os seus acessórios, retornando à margem em que era aguardado com ansiedade. Deitado por terra um bom bocado, tentando recuperar do esforço, tomou consciência de que essa via ficava completamente rejeitada. Liberto do uniforme e das botas voltou depois de recomposto ao meio do rio e, mergulhando em apneia num fundo de pouco mais de 3 metros, recuperou do fundo os artigos militares que antes ali largara. Parecia pois aparentemente esgotada qualquer saída do local para o interior e que a única solução seria o pedido por rádio de reembarque na LFP que, entretanto e há muito, tinha abandonado o local.

Eis que no chão junto à tal vegetação cerrada se viram vestígios de pegadas de javali. Como ali não chegariam a nado, investigou-se a sua origem e viu-se na densa vegetação um pequeno buraco junto ao chão, de não mais de 30 cm. E foi rastejando por ali mesmo, por aquele orifício, que se encontrou a saída do local, através do mesmo pântano mas por um percurso em que a água não atingia mais de 20 cm. Foi assim possível sair daquela praia e arrancar efectivamente para a operação planeada.

Nota* Sobre bilharziose ver: http://homepage.ufp.pt/pseixas/posgradIH/Modulo%20de%20Saude%20Publica%20e%20Controlo%20de%20Doencas%20-%20Documentos%20do%20Prof.%20Abilio%20Antunes/Bilharziose.pdf

A assinalar este acontecimento, surgiu na altura num jornal do Comando da Defesa Marítima dos Portos do Lago Niassa, designado o Tchifuli, a caricatura que hoje se mostra dum crocodilo bem confortado. Assinada sob pseudónimo JOSU TOZA, rapidamente se soube ser da autoria do SUBTEN RN José Luís Tocha Antunes dos Santos (12º CFORN), Comandante da LFP “Régulus” .

Nota: “Checa” era a designação dada aos militares recém-chegados a Moçambique

Foto Niassa010

2 comentários:

valdemaromarinheiro disse...

Foi maravilhoso e de enorme alegria recordar o relato da operação.Era eu Marinheiro Radarista no Estado Maior e tinha conheciemnto de todos os Brifings e relato das operações, recordo depois de reler a vossa leitura que no relato da ordem de operações o Senhor Imediato não omitiu nada. Fui tambem eu colaborador e dactilografava o Jornal. Muitas outras Histórias se passaram. Farei esse relato em Terras rio e mar, logo que me seja possivel. Continuem a pesquisar e a desenvolver este maravilhoso trabalho trabalho

Antides disse...

Deliciosa narrativa! Soubera do acontecimento, mas sem estes ricos pormenores.
Parabéns ao Sr. Imediato do DFE5. Além de se ter libertado do estômago de um crocodilo, dos apetrechos militares, da água, duma ilhota que um javali tornara acessível, das malvadas formigas que iam procurar os tais "locais sensíveis" do nosso corpo, ainda arranjou coragem, depois de tudo isto, para ir recuperar, em "apneia" (leia-se sem garrafa de oxigénio), um jipe da F.A.P. que caíra ao fundo do Zambeze.